É tempo de Natal. Luzes coloridas, sininhos, bolas de enfeite, um espírito de ternura paira no ar. O simpático e generoso Papai Noel fica parado numa esquina do Morumbi, próxima ao charmoso shopping, distribuindo balas. O trânsito lento obriga a moça, dirigindo um Palio prata, a parar mais do que esperava. Papai Noel se aproxima. Em vez de oferecer mais algumas balas, usou projéteis: sacou um revólver e disparou três vezes em direção a moça. Ela tomba sobre o volante. Papai Noel, sem trenó puxado por renas, sai correndo para um carro, estacionado perto dali, e foge.
Neste período de Natal, 2001, a cena de ódio substituía Jesus por Noel, símbolo do bom velhinho São Nicolau, que distribuía presentes para as crianças pobres, nessa data que, na história da humanidade, é antes e depois. Uma das balas, disparadas pelo aparente bom velho atravessou o rosto da publicitária Renata Guimarães Archilla, arrancando-lhe dentes. Ela, atônita, conseguiu colocar alguns deles, ensanguentados, nas mãos. O vidro escurecido e à prova de vandalismo o absorveu um pouco o impacto dos tiros. Renata escapou da morte, mas ficou com o rosto deformado. Ali, à espera de socorro, teve uma certeza íntima de quem havia mandado fazer aquilo. Seria angustiante.
Papai Noel subiu no carro que ele mesmo havia estacionado e saiu rangendo os pneus. A fantasia de Papai Noel foi abandonada, dentro de um saco, com a arma do crime, na avenida Morumbi.
A recomposição do rosto de Renata só foi possível com uma sucessão de cirurgias, oito, fora os implantes. O carro de Papai Noel ficou por longo tempo parado e provocou uma multa. O veículo tinha placas de Sorocaba, no interior de São Paulo, levou ao condutor, que sabia tudo sobre hábitos e rotinas de Renata. E conduziu ao autor. Renata tinhas suas certezas. A Polícia iria materializá-las, dentro dos princípios da velha Roma: Cui prodest? A quem aproveita? Responder a essa pergunta é o passo inicial para toda investigação de um crime misterioso. Porque é misteriosa a alma humana.
Renata, então com 29 anos, sonhava apenas em comprovar a identidade do pai biológico. Esse pai a considerava um incômodo, estorvo mesmo. Renata sabia muito bem a quem buscava ansiosamente. A mãe lhe havia contado sobre o caso com Renato Archilla, um empresário criador de cavalos, dono de uma fazenda com haras em Sorocaba. Lucia Guimarães, a mãe, revelou até que Renato tentou convencê-la a abortar. Ela, 17 anos; Renato, 19. Num processo judicial, que se arrastou por longos doze anos, Renata comprovou, por exame de DNA, os laços sanguíneos: era indiscutivelmente filha de Renato.
Primeiros passos da investigação: o carro do Papai Noel atirador tinhas placas de Sorocaba. O haras do pai de Renata também fica em Sorocaba. O carro pertencia a um segurança de Renato, cujos telefones foram encontrados na agenda do Papai Noel, que se preparou para ser assassino. Papai Noel foi o disfarce de um ex-policial militar, expulso da corporação, José Benedito da Silva. Não teve como negar. Mas, bem ao estilo do pistoleiro profissional, contratado para matar, preferiu manter o mais absoluto silêncio sobre o autor da encomenda assassina. Na linguagem da cadeia, onde foi parar, condenado, chama-se a isso de “segurar a bronca”, atitude necessária porque “deu treta”. Omertà cabocla. É incrível, mas entre a bandidagem vigora um indecifrável código de honra, como se houvesse alguma honradez na prática absurda de um crime assim.
Mas a Polícia chegou lá. Comprovou a suspeita de Renata, para quem tudo era óbvio, e avançou um pouco mais. Não havia um só mandante. Eram dois. O pai de Renata e seu próprio pai. O pai e o avô de Renata! Estarrecedor.
Entender alma humana está além do que se pode depreender ao examinar os autos frios de um processo criminal. Sei disso porque a prática ensinada pela vivência nesse mundo cruel, me ensinou a percorrer labirintos para conseguir chegar à epiderme finíssima da alma. Nesses autos, o que se quer provar é a autoria. O que seja considerado suficiente para uma condenação, e no caso de Renata pai e avô foram condenados. Mas eu quero mais, muito mais: decifrar o enigma de Caim, o primeiro assassino, porque tantas pessoas gostam de matar e ainda procuram legitimar o assassinato, sob o rótulo suave de “motivação” para o ato extremo de violência.
O pistoleiro fantasiado de Papai Noel assumiu tudo em termos de autoria. No mais, se manteve calado. O avô, também contratante, se chama Nicolau. O bom e simpático velhinho, Nicolau. A fusão dos dois Nicolaus, uma simbiose anormal, produziu um caldo humano sinistro. Um do bem, em tese; outro, do mal. Mas, sem naniqueísmo, as teorias sobre a gênese do caridoso Nicolau e do avô que deveria amar a neta, caíram por terra e serão sepultadas na vala comum do esquecimento.
Por que tudo isso? Você irá perguntar. E cabe a mim responder.
Reconhecida a paternidade, pelo código genético, Renata passou a ter direito na partilha dos bens e mais pensão datada retroativamente. E foi contra isso que o pai de Renata se insurgiu. A bem da verdade, registre-se que ele chegou a titubear nesse sentido, mas o avô Nicolau foi intransigente. Não e não. Renata, pensava ele, era uma estranha no ninho familiar, indesejável. Oportunista. Negativo: o pai de Renata até pensou em aproximar-se mais, estarem próximos, mas Nicolau não quis saber da moça que reivindicava o direito de ter um pai.
O julgamento foi no Tribunal do Júri do Fórum na Barra Funda. Renata se perguntava em indagações profundamente intimas: “Ninguém é obrigado a amar ninguém. Por que fez isso comigo”? O cruzar dos olhares numa hora dessas é impactante. Pedro negou a Jesus por três vezes, e quando o galo cantou, conforme profetizado, o Mestre olhou para ele. Pedro chorou amargamente. Está registrado nas Escrituras.
Renata foi ao Fórum. Mas não quis fitar o pai que planejou matá-la. Quando começou a ser interrogado, a moça retirou-se do plenário e ficou atrás de uma porta. Não queria vê-lo. Apenas ouvi-lo. O pai negou, negou, disse que era “cuidador da vida”, referindo-se aos cavalos. A negativa de autoria foi a tese do advogado Marcial de Hollanda, desembargador aposentado do Tribunal de Justiça. Pela família de Renata, atuou como assistente da acusação o advogado Mario Sérgio Duarte Garcia, ex-presidente da OAB-SP. Os atores apresentaram esgrima jurídica. Os pesos na balança a Justiça eram desequilibrados, por mais que Têmis, a deusa grega que a simboliza, use venda nos olhos.
Ela se lembrou, nesse instante, que antes de negar ser o pai, Renato chegou a convidá-la para assistir no haras ao nascimento de um potro,”a coisa mais linda”. Pensei: é lindo mesmo. Mas não se manda matar cavalos... Escondida, Renata chorou.
Pai e avô foram presos numa bela mansão nos jardins, um símbolo da riqueza do pai e avô de Renata. Delicadíssimos com os cavalos. Rudes com a filha e a neta. Aprendi, uma vez mais, que o dinheiro, o vil metal, não só é a raiz de todos os males, como está por trás de uma maioria de crimes. É a síndrome de Caim, o irmão irado que, depois de matar Abel, retirou-se para o leste do Éden, título de um belo romance de John Steinbeck. Aqui, o caso de Renata e o Papai Noel assassino é um romance real, digno de Nelson Rodrigues, sem absolutamente nada de ficção. A vida humana repleta de surpresas inacreditáveis.
Por Percival de Souza
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